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Empodere: o budismo de Sarnath e a Associação de mulheres Rajbhar, em Varanasi

por Gabriela Mendes

Sarnath, foi o primeiro e o último lugar que visitamos em Varanasi: para explorar o turismo que gira em torno do budismo e, depois, para conversar com Rhada Devi, líder da Associação Samuh de mulheres Rajbhar. Apenas neste segundo momento conhecemos a história que não é contada nos guias, narrada pela voz de uma justa causa que expõe contradições de terras desapropriadas pelo governo para construção de monastérios, onde milhares de pessoas vão em busca de elevação espiritual. 

A gente caiu em Banaras* de paraquedas, depois de uma viagem insana de trem saindo de Agra, cuja previsão era durar 12 horas, mas acabaram sendo um total de 17h, suportadas porque ainda estávamos maravilhadas com o Taj Mahal. Ainda meio zonzas, em uma cidade que parece concentrar tudo que há de mais intenso na Índia, perguntamos no hostel o que deveríamos fazer e logo nos falaram: vocês precisam conhecer Sarnath, o lugar da origem do budismo. Não entendemos muito bem, porque, pra nós, que já tínhamos visto todo o Lonely Planet, Varanasi era a cidade mais sagrada para o hinduísmo, e, na nossa cabeça, deveríamos começar a explorar a cidade antiga, ver as oferendas no Rio Ganges e aquela coisa toda. Mas acabamos seguindo a recomendação e pegamos um tuktuk.
*Varanasi é chamada pelos indianos de Banaras ou Kashi, a nomenclatura que nós conhecemos é falada apenas pelos estrangeiros. 

Foi ali que sentimos o primeiro desafio que Banaras nos impunha: não há meditação que resista ao trânsito caótico e a poluição intensa que tivemos que lidar durante os 40 minutos que levamos para chegar à Sarnath (imagine como viver por aqui deve ser desafiador para os pulmões e cabeça). Depois do 14km, as buzinas foram diminuindo e saltamos meio desnorteadas, sem nem saber o que veríamos ali. Demos uma olhada rápida nos templos, que são mais ruínas arqueológicas do que monumentos lindos, como os que ficam na Tailândia e no Laos, mas logo, resolvemos voltar ao fascinante centro antigo de Banaras.

Já nos últimos dias da nossa estadia na cidade, agora hospedadas no Couchsurfing do nosso anfitrião Shunya, conversamos sobre nosso objetivo de visitar projetos de empoderamento feminino na Índia. Shunya, que é ativista político e repórter do site The Sabha, disse que nós precisávamos conhecer a Associação Samuh, de mulheres Rajbhar, que fica em Sarnath. Outra vez, com as mochilas nas costas, chegamos à Sarnath sem saber o que nos esperava. Fomos recebidas por Rahul, amigo de Shunya, que nos conduziu à associação e nos ajudou com a tradução. 

Depois de uma longa conversa, desafiadora pela mistura do nosso inglês abrasileirado com a tradução da língua bhojpuri para o indian english, ficamos impressionadas com a trajetória daquelas mulheres, que lutam pelos seus direitos em um lugar onde pessoas buscam a elevação espiritual… e que mal sabem que os monastérios onde estão hospedadas são território de disputa de famílias desapropriadas. Conhecemos as entrelinhas de um dos lugares mais sagrados da religião budista, contaminado pela necropolítica.

💡  Confira o documentário feito pelo The Sabha no final da matéria sobre a luta dos Rajbhar em Sarnath.

Rhada Devi (com o sari azul) e suas aliadas da Associação Samuh, em Varanasi

Qual a relação de Varanasi, Sarnath e o legado budista

Banaras é um dos territórios continuamente habitados mais antigos do mundo, datando ao menos cinco mil anos de ocupação. O local onde fica Sarnath, atualmente, é parte da cidade de Vanarasi e foi onde ela nasceu, entre o Rio Ganges e Varuna, primeiramente pelos povos tribais, que ali coabitavam entre reinados, invasões e disputas de terras. 

A história conta que o nome, Banaras, foi criado a partir do reinado de Baneras, rei de origem Rajbhar, uma tribo originária que habitava grande parte do estado de Uttar Pradesh, principalmente às margens do Rio Ganges. O próspero reinado de Baneras, deu origem ao nome da cidade sagrada, que atualmente é uma das cidades que incita mais curiosidade na Índia e uma das mais visitadas do mundo.

O que ficou claro nesta viagem é que a Índia é uma miscelânia de invasões, mistura de povos e culturas, o que faz o país parecer um universo à parte. Em Vanarasi não é diferente. 

Em 528 A.C, Sidarta, o Buda, após sua iluminação, foi a Varanasi fazer o primeiro sermão sobre os princípios da doutrina budista, os chamados de Sutras, embaixo da árvore sagrada Bhodi; o que marcou a fundação da religião. Até o século XII, aquele território era considerado o centro do budismo, até serem expulsos pela Invasão Mongol, que destruiu todos os seus templos. Nesta época da ascensão, essa parte de Banaras foi chamada de Sarnath, uma palavra em sânscrito que faz referência a um conto budista.

A partir do século XIX foram realizadas escavações arqueológicas em Sarnath, revitalizando a memória budista do local. O que coincidiu com o boom do turismo global, ganhando ainda mais força no início do século XXI. Vários monumentos foram restaurados, reconhecidos pela UNESCO e integraram parte do roteiro turístico religioso de Varanasi.

Turismo em Sarnath

Sarnath resgatou o título de um dos locais mais importantes do budismo e foram construídos templos com representações de diversas linhas da religião. Eles são visitados, todos os dias, por milhares de turistas. Alguns dos mais famosos são:

Ruínas arqueológicas de Sarnath: o parque foi restaurado no século XIX e é onde fica a Dhamek Stupa, no local exato onde Buda fez seu primeiro sermão, erguido no século V em sua homenagem, e o Ashoka Pillar. Existiam cerca de 28 stupas no local, que são monumentos budistas sagrados, construídos para homenagear Buda e seus seguidores ou guardar objetos sagrados. Elas foram feitas no século III. O ingresso custa 100 rúpias (US$1,4).

Monastérios: o Mulagandha Kuti Vihar é um templo universal, construído através de doações de centros budistas de vários lugares do mundo. Também é onde fica uma árvore descendente da que Buda fez seu sermão. Há também os monastérios Tibetano, Japonês, Chinês e Thai. Todos podem ser visitados gratuitamente.

Museu Arqueológico de Sarnath: uma pequena coleção de objetos arqueológicos de Sarnath. Não encontramos informações de preço de entrada.

💡 Este turismo pode ser interessante, mas agora entendemos a importância de ao menos conhecer a história que não é contada: os novos monastérios budistas foram e estão sendo construídos em terras de populações tradicionais, desapropriadas pelo governo. É ai que a história de Rhada Devi e das mulheres Rajbhar se conecta, já que são as protagonistas desta luta.

Sobre a população Rajbhar: de tribo originária à subcasta impura

Antes de falar sobre a luta de Rhada Devi e o trabalho da Associação Swayam Sahataya Samuh Sarangnath, é preciso dar uma contextualização sobre os Rajbhar, a casta da qual estas mulheres fazem parte. 

Apesar de ter sido abolido desde 1947, o sistema de castas na Índia ainda é muito presente. Existem mais de três mil castas e a classificação delas tem grande impacto nas estruturas sociais do país e na manutenção de desigualdades sociais.

O povo Rajbhar é uma tribo originária, que já habitava os territórios de Banaras desde os primeiros registros de ocupação. Eles vêm linhagem do rei Baneras e configuraram uma sociedade complexa, com a construção de fortes, sistema de agricultura e organização comunitária. 

Com a ascensão do sistema védico, todas as tribos aborígenes, não hindus, foram classificadas como subcastas, impuras, sendo marginalizadas. Este processo de marginalização foi ainda reforçado com a colonização britânica, no século XIX, que lançou mão deste como estratégia de dominação. No exemplo do povo Rajbhar, também tornaram-se parte do que há de mais segregado na organização social indiana.

Atualmente, os Rajbhar representam cerca de 2-4% da população de Uttar Pradesh, o estado em que fica Varanasi. São, em sua maioria, agricultores e também trabalham com construções, força de trabalho pesado e poucos têm educação formal. Grande parte do trabalho é feito por homens, mas algumas mulheres também trabalham nas construções. Nas castas mais baixas o trabalho feminino “é permitido”, apesar de mal visto. 

A consequência dessa manutenção da estratificação social faz com que os Rajbhar não estejam representados socialmente, em universidades (apesar de Varanasi ter a maior da Índia) e, muito menos, na política, fazendo com que suas causas permaneçam silenciosas. 

Radha Devi, líder da Associação de Mulheres de Sarnath

Rhada Devi e a luta por suas terras

Nos últimos anos, os Rajbhar vêm sofrendo uma violenta desapropriação de suas terras por parte do governo indiano. Mesmo tendo papéis comprovando a propriedade, eles são despejados de suas casas, sofrem agressões psicológicas e físicas, pressionados a abandonarem suas residências. 

O rosto que dá força à causa é de Rhada Devi, com quem nós conversamos na nossa ida à Associação Samuh, na qual ela lidera. Tradicionalmente, na Índia, mulheres ficam em casa e os homens saem para trabalhar. Por conta disso, quando o governo começou a ameaçar o povo Rajbhar, Rhada Devi tomou a frente da causa, já que estava vivenciando diariamente os confrontos em sua moradia. Primeiro, a família foi contra a atitude de empoderamento pela necessidade, depois de entender a potência, uniram forças.

As terras do pai de Rhada Devi representavam 12 hectares e era onde sua família plantava, há mais de 100 anos, complementando a alimentação da casa. Atualmente, é onde está o Monastério Japonês, em Sarnath. 

Rhada Devi resistiu, foi presa, sofreu tentativas de homicídio, saiu nos jornais e se tornou um símbolo de resistência para a comunidade. Ela conseguiu manter um pequeno pedaço de terra próxima ao monastério, mas ainda tem esperança de reconquistar o que foi roubado. 

Infelizmente, conversando com Rahul, entendemos que a causa, apesar de justa, está perdida, já que os Rajbhar têm pouquíssima representação política, frente ao poder econômico dos centros budistas.

 

A Associação de mulheres Rajbhar

Motivada pela união comunitária que conquistou pela lutas de terras dos Rajbhar, Rhada Devi teve a ideia de fundar uma associação feminina, a Swayam Sahataya Samuh Sarangnath. Como as famílias perderam uma importante fonte de subsistência, que eram suas terras de plantio, e o salário trazido pelos maridos não era suficiente, se juntaram para tentar aumentar a renda mensal. 

Em 2015, a Associação começou com Rhada Devi e cinco mulheres – atualmente são 150. Com o financiamento de linhas de crédito de bancos sociais do governo, abriram a produção de papard, um pão crocante de lentilha (dhal) e grãos. Todas as manhãs elas se reúnem para a preparação e revendem em pequenos comércios locais. 

Além disso, das facetas do capitalismo, outra fonte de renda é a confecção de colares, trazidos por uma empresa externa que paga, por uma hora de trabalho, 1,75 rúpias (US$0,02), o que representa a produção de 3 colares. 

Apesar de parecer um ganho risível, as mulheres nos contaram como a associação mudou a vida delas, podendo colocar seus filhos na escola e ganhando uma certa independência de seus familiares. A associação de Rhada Devi também é um centro de acolhimento feminino, de união de forças de mulheres que enfrentam, todos os dias, os desafios impostos pelas desigualdades do país, tanto em relação às castas, quanto ao gênero.

Rhada Devi e mais cinco mulheres nos receberam na Associação Samuh com muito papard, chai, biscoitos cheios de especiarias e sorriso no rosto.

💡 A associação não tem site ou telefone. Para visitá-la, é preciso entrar em contato com o Rahul. Se você tem interesse, fale com a gente nos comentários. Ela está localizada do lado direito da entrada estação de trem de Sarnath.

Nosso simpático tradutor, Rahul Rajbhar, também é da casta Rajbhar e tem um papel muito importante na comunidade. Ele é pesquisador e pós-doutorando em Tribos Denotificadas pela Universidade de Banaras, comunidades criminalizadas pelo sistema de castas. Rahul é um dos únicos representantes da tribo Rajbhar que teve acesso à universidade e sua luta pela representação social do seu povo.

Saiba mais no documentário sobre a causa Rajbhar produzido pelo The Sabha

Saiba mais sobre nossa viagem pela Índia

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